Álvares Machado mantém viva tradição do Shokonsai há 103 anos
Como acontece há 103 anos, não choveu em Álvares Machado (SP) no segundo domingo de agosto. Ou melhor, não choveu por volta das 17h30, horário em que são acesas 784 velas no Cemitério Histórico Japonês – uma para cada túmulo do local. O domingo, 9, amanheceu nublado, com poucas aberturas de sol. Pouco antes da cerimônia, chegou a chuviscar em alguns lugares, mas na hora da cerimônia, não choveu nem ventou a ponto de apagar as velas. Como disse o presidente da Associação Cultural Nipo-Brasileira da Alta Sorocabana – Hansoro – Toshio Koketsu, lembrando uma frase do ex-presidente da Associação Cultural, Agrícola e Esportiva de Álvares Machado (Aceam) – entidade responsável pela realização do evento – Alberto Sano: “Hoje é mais um dia que não chove!”.
O ritual é realizado desde 1920, um ano depois dos primeiros sepultamentos no cemitério, único na América Latina. No local, há apenas um não descendente de japoneses enterrado no cemitério. De nome Manoel, ele morreu defendendo uma família de japoneses. O Cemitério Japonês, como é conhecido, foi construído pelos imigrantes pela necessidade em construir um cemitério local, já que o mais próximo ficava distante cerca de 15 km, em Presidente Prudente.
Um dia – Demorava-se praticamente uma dia para se chegar e, quando retornava – havia um grupo designado para isso – já haviam outros corpos para serem enterrados. Dos 784 falecidos, cerca de 70% são crianças entre 1 e 3 anos, que faleceram por conta de doenças.
Os enterros foram proibidos na época da 2ª Guerra Mundial por volta de 1942. Em 1980, o cemitério e outras áreas no mesmo espaço, como o palco das apresentações culturais e a primeira escola fundada pelos imigrantes, foram tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo. O local é mantido pela Associação Cultural, Esportiva e Agrícola Nipo-Brasileira de Álvares Machado (Aceam).
Fé – O Shokonsai é uma cerimônia que reúne muitas histórias. Histórias de luta e de sofrimento. Mas em que predomina, sobretudo, a fé. De acordo com o livro “Cemitério Japonês – O descanso de anjos e desbravadores (volume II), que compõem a Coletânea Um Século de Imigração Japonesa – Álvares Machado, de Eli Tatizawa e Vilma Mayuki Tachibana, “em 15 de julho de 1920 foi comemorado o primeiro Obon, o equivalente japonês ao Dia dos Finados. Era uma quinta-feira. E, no ano seguinte, a data cairia numa sexta-feira. Foi daí que alguém – não há registro de quem foi – propôs: ao invés de Obon, celebrar-se ia o Shokonsai, em data móvel, sempre no segundo domingo de julho – uma decisão muito mais racional, pois pouparia um precioso dia de trabalho e ainda se faria, adequadamente, o culto aos antepassados, como a aristocracia japonesa fazia no Japão durante o período Heian (794 a 1185)”.
Ainda segundo a obra, “na crença japonesa, o Shokonsai, assim como no Obon (que no Japão dura três dias, o mais longo dos festivais) os espíritos dos antepassados retornam a este mundo para visitar seus parentes, o que é motivo de alegria”.
Música e gastronomia – E desde o ano passado, o Shokonsai passou a contar também com apresentações artísticas sob o comando do artista e apresentador Nobuhiro Hirata, além da já tradicional gastronomia japonesa. Até 2022, o evento era realizado em apenas um dia. Com a introdução dos shows, passou para dois dias.
Este ano se apresentaram os grupos Gakuto (Maringá), Requios Gueinou Doukoukai Eisá (Marília), Kotubuki (Maringá), Sansey (Londrina), Acel (Londrina), Yossakoi Tomodachi (Araçatuba), Animê Band (São Paulo), Odori Fujinkai Buyokai (Araçatuba), Rádio Tassio (Presidente Prudente) e o Dantai Fênix (Presidente Prudente), além de grupos de k-pop.
Também a partir deste ano, o evento passou a contar com workshops de origami, bonsai, shodê e haicai, entre outras artes.
As novidades, que inclui também o espaço kids, são uma tentativa para atrair a participação de jovens e crianças e, desta forma, garantir a continuidade da Aceam, entidade que responsável pela realização do evento.
No domingo, a programação teve início com a celebração de um culto budista na Capela do Cemitério Japonês pelo monge Dan Miyuki, do Templo Honpa Hongwanji de Álvares Machado. O monge explicou que, diferentemente do que alguns imaginam, shokonsai (sho = convida + kon = alma + sai = festa) não significa um “convite às almas para celebrar”. Ao contrário, explica, “são as almas que nos convidam a participar da festa”.
Herança – Em sua mensagem, o presidente do Hansoro recordou “um pouco” a história da imigração, que este ano comemora 115 anos desde a chegada do navio Kasato Maru trazendo os 781 pioneiros. “Sabemos que a maioria dos nossos antepassados veio para Brasil como agricultores, que corajosamente encararam e enfrentaram as mais variadas adversidades que somos incapazes sequer de imaginar em uma região inóspita, coberta de densas florestas, lutando contra doenças desconhecidas e endêmicas e sofrendo ataques de animais silvestres”, disse Toshio Koketsu.
“Com coragem e resiliência, os imigrantes continuaram lutando sem esmorecer, dedicando-se exclusivamente à agricultura, cultivando nesta terra tudo que podia ser produzido, desenvolvendo um papel importantíssimo na economia, investindo na produção e na qualidade”, explicou, acrescentando que, “além do mais, mesmo com todas essas dificuldades, nossos pais nunca se esqueceram de investir também na educação de seus filhos”.
Para Koketsu, “graças a esses incalculáveis sacrifícios, seus descendentes hoje se encontram atuando exemplarmente em todos os segmentos da sociedade, exercendo suas atividades, quer no comércio e na indústria, na política e na ciência, bem como nas mais diversas profissões liberais, atingindo níveis notáveis de credibilidade, o que nos orgulha como descendentes”.
Segundo Koketsu, “tudo isso tem muito a ver com a riqueza da herança dos princípios e dos legados transmitidos pelos nossos antepassados”. “Razão pela qual, em reconhecimento e respeito a estes bravos guerreiros, externamos a nossa reverência e gratidão, a quem oramos pela paz e proteção divina”, destacou o presidente do Hansoro.
Torii – Em seguida, com a presença da Diretoria da Aceam; do vice-prefeito de Álvares Machado, Luiz Francisco Boigues (Chiquinho); da família Funada; do deputado estadual Mauro Bragato; do cônsul Yoshiyuki Nakatani e do presidente do Bunkyo – Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social – Renato Ishikawa, entre outros, foi inaugurado, no Parque das Cerejeiras, o torii (portal que antecede a entrada de templos budistas e santuários xintoístas).
Aberto ao público no ano passado, o parque também conta com uma réplica de um templo japonês e um jardim com cascata, pedras, ponte no estilo japonês e um aquário com carpas comemorativos ao Centenário do Shokonsai, celebrado no ano passado por conta da pandemia. O torii foi patrocinado pelo Grupo Funada.
Antes da cerimônia oficial de abertura, os convidados participaram de uma Oração pela Paz no Monumento dos Soldados Falecidos de Todas as Nações na Segunda Guerra.
Homenagens – A abertura oficial, que contou também com a presença do presidente da Aceam, Carlos Utimura, e do prefeito de Álvares Machado, Roger Fernandes Gasques, foi marcado , por homenagens, como a do prefeito declarando o cônsul Hóspede Oficial, e da Aceam a Júlia Funada (representando a família Funada); Dema e Márcia (em nome dos voluntários); José Aparecido Martim Nogueira e Orestes Ederly (Leto).
Em seu discurso, o prefeito destacou que “temos a obrigação de dar todo apoio possível e dedicar à missão de preservar aquilo que o município tem de mais valor, que é a história”. “E a história do nosso município tem, na sua maior parte, participação da comunidade japonesa e seus descendentes que chegaram aqui desbravando esse espaço para que pudéssemos ser o que somos hoje, principalmente em termos economia e em termos de cultura”, disse Roger, afirmando que a ideia é tornar o espaço da festa “cada vez mais grandioso para receber cada vez melhor as pessoas que aqui estão”.
Gratidão – Para o deputado estadual Mauro Bragato, que destinou emenda parlamentar para a festa, “é sempre uma satisfação participar deste evento porque aqui se renovam os compromissos da comunidade japonesa com os antepassados”.
O cônsul Yoshiyuki Nakatani agradeceu a “calorosa recepção” e parabenizou a associação por organizar “este importante evento em homenagem às almas dos imigrantes japoneses que descansam nesta terra”. “Com respeito e gratidão lembramos daqueles homens e mulheres corajosos que deixaram o Japão para construir uma nova vida no Brasil. Pioneiros que enfrentaram com determinação e resiliência os desafios de uma terra e cultura desconhecidas para eles, trabalhadores que cultivaram com as próprias mãos estes campos e trouxeram a cultura e as tradições japonesas”, explicou o cônsul, que lembrou “daqueles que partiram cedo deste mundo devido as duras condições daquela época e hoje honramos as suas memórias levando seu legado em nossas orações e mentes”.
“Rezamos para que suas almas encontrem a paz e a iluminação. Agradecemos por seus trabalhos e sacrifícios e espírito inabaláveis que alicerçaram a vibrante comunidade nipo-brasileira que existe hoje”, concluiu Nakatani, que expressou profunda gratidão do governo japonês a todos os responsáveis “por preservarem este local, as tradições e esta homenagem às almas dos imigrantes pioneiros”.
Admiração – O presidente do Bunkyo, Renato Ishikawa, disse que é “digna de admiração os esforços em manter vivo o shokonsai, esse ritual histórico realizado neste ano que comemora sua 103ª edição, a despeito de todas as dificuldades enfrentadas”. “Hoje aprendi, realmente, o significado do shokonsai”, afirmou Renato Ishikawa, referindo-se às explicações do monge Dan Miyuki.
Segundo ele, “mais impressionante ainda é constatar que a dedicação da comunidade local liderada pelo senhor Luiz Takashi Katsutani para realizar as obras de revitalização deste local mesmo diante da pandemia”.
O tradicional Bon Odori, realizado simultaneamente ao ritual das velas, encerou a programação do Shokonsai.
Uma realização da Associação Cultural, Esportiva e Agrícola de Álvares Machado, o 103º Shokonsai contou com apoio da Prefeitura Municipal de Álvares Machado e Câmara Municipal de Álvares Machado.
O jornalista Aldo Shiguti viajou no leito-cama da Viação Andorinha.
(Aldo Shiguti)