Canto do Bacuri – 1984

Por alguns meses, entre as obras populares a venda nas bancas de jornais, aqui em São Paulo, encontrava-se 1984, de autoria de George Orwell, publicado pela primeira vez em 1949. Também tinha em minha estante, numa publicação da Companhia Editora Nacional, de 1973, que adquiri num dos sebos, próximos à Praça da Sé. Foi o livro que li, sendo o momento bastante propício. Seria diferente, se o mesmo fosse lido numa outra situação. O fato deste livro ser vendido numa banca, por preço acessível, muito mais abaixo do preço de uma livraria, numa edição simples, haveria um motivo. De fato, o motivo era claro.

1984 é uma das obras que explora um tema controverso na literatura: a distopia. Este é um gênero presente entre os escritores, também nos filmes e nas séries da Netflix. Mas qual seria a definição. Claro, trata-se de um direcionamento na literatura em que a narrativa dirige a um futuro tenebroso, de total retrocesso, de completa desumanização. No caso, seria a antípoda de uma utopia, cujo tempo ainda não vivido estaria submetido a um planejamento, de tal forma que toda desigualdade não tivesse vez. A isso, remetemos a obra de Thomas Morus, Utopia, de 1516.

Entre os autores de um passado recente, que publicou uma obra de distopia, lembramos de George Orwell. A leitura de 1984 não é das mais agradáveis. Quando o autor escreveu a obra, no início da Guerra Fria, tinha como referências dois estados totalitários: a Alemanha nazista, que sucumbiu em 1945, e a União Soviética de Stálin, que perdurou por 30 anos, até a sua morte em 1953. O que Orwell pretende mostrar foi a projeção num futuro, ano de 1984, quando todo o planeta estaria girando em torno de uma geopolítica em que defrontariam três continentes – a Oceania, a Eurásia e a Lestásia. Os países teriam sido abolidos. O lugar narrado é Londres, um dos núcleos urbanos que se despontava na Oceania. Deste mundo fariam parte também os Estados Unidos e parte da Europa Ocidental. A Eurásia seria a Europa Oriental e a Rússia. Quanto a Lestásia, seria um conglomerado de países do Oriente, incluso a China e o Japão. Nada se fala da África, da Austrália ou dos países latino americanos. Possivelmente sem importância alguma, ou ainda, extintos diante das forças mais poderosas.

Para que a Oceania possa existir, a guerra seria uma condição indispensável como forma de manter o equilíbrio. Dizia-se de que a guerra tinha esta função, podendo ser com a Eurásia ou com a Lestásia. Nada se fala do que acontecia nestes outros continentes. O governo de Oceania é totalitário, sem que exista uma determinada ideologia clara, senão uma submissão a uma ordem, a quem chamavam de Grande Irmão. Era o Grande Irmão que se dirigia à população, com seus discursos e intimidações. Aparecia ele numa tela, somente o rosto, com barba, uma pessoa comum, que com seus olhos perfurantes que usava da palavra. Seria a sua aparição a antecipação do que viria a ser depois a tela de um computador. Na época, parecia mais uma tela de televisão, que tanto se fazia ver, como enxergava. Chamavam de teletela.

Era o Grande Irmão que a tudo vigiava; cada um tinha na sala da casa a teletela que vigiava, cobrava, metia medo e admiração. Assim seria a casa de Winston Smith, a quem o romance tem como protagonista, um anti-herói, submisso e polêmico. Seu fim não é nada dignificante. Neste país totalitário, não existia de fato um ditador, algum apaixonado pelo poder, um explorador da obediência tola dos fracos. O próprio Grande Irmão, seria ele também uma criação de um sistema que procurava manter uma ordem calcada em três alicerces: guerra é paz, liberdade é escravidão, e Ignorância é força.

Mas para que este estado totalitário pudesse existir, era necessário a mudança de atitudes mentais, acabando com a história e revertendo valores. Uma mentira acabava se tornando verdade, se assim determinasse o Partido, o único existente. De fato, tratava de um estado tirânico, antidemocrático. Sempre pensei que a democracia fosse a dimensão política desejada por todos, sendo a melhor, com as suas deficiências. Sempre admirei a democracia grega, com seus representantes em defesa da cidadania. Quando deparo com defensores do inverso da democracia, como o descrito em 1984, um vento frio percorre-me a espinha, causando-me espanto e medo.

Quando a distopia sai do campo literário e entra na História, parece que a ficção tem muito a nos dizer a respeito do mundo em que vivemos. Se 1984 nos assusta, o Grande Irmão como uma criação humana, pode estar presente entre nós. Não se trata de um ser especial, como messias, como eleito ou escolhido, mas como uma necessidade das almas fracas que perderam a noção da decência em favor da submissão. Quando a submissão acontece, existe uma ordem, por mais opressiva que seja, em que a responsabilidade perde importância. Uma criança não tem a noção da responsabilidade, nem os loucos, nem os fora da lei. A defesa da submissão é o caminho mais fácil para a desumanização. Mas ela pode ser agradável para alguns. Por isso, ela tem uma função, pois a responsabilidade nunca recairá nos submissos. A responsabilidade é do outro.

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