Canto do Bacuri – Admirável mundo novo

Existe algo de aterrador numa história que não aconteceu ainda. Assim, tematiza-se um gênero literário, presente no século passado, que ganhou a dimensão estética em livros como o de Aldous Huxley, mais precisamente na obra Admirável mundo novo. Junto a 1984, de George Orwell, estas escritas prenunciam o que chamamos de distopia. No caso de Aldous Huxley, não se trata apenas de um mundo indesejado, é também assustador. A obra teve a sua primeira publicação em 1932, na Inglaterra. Isso antecedeu a Segunda Guerra Mundial e o advento do nazismo em sua maior expressão. Existe uma edição atual, pela Biblioteca Azul, da Globo Livros, Rio de Janeiro. O livro lido por mim é uma edição antiga, da Bradil, de 316 páginas.

Muitos autores exploraram este tema, criando situações prováveis, numa ilha, num tempo fictício, num futuro, mesclando elementos de ficção científica. É justamente o que acontece com Admirável mundo novo. Local: Londres. Ano: 2540. Nada mais existe do passado. Como que um vento tivesse varrido qualquer vestígio da história, como nada disso tivesse mais valor. Nada disso é muito original. O Imperador Amarelo, como ficou conhecido Huang Ti, teria igualmente apagado a história chinesa, sendo que tudo deveria existir a partir dele. Seu reinado aconteceu de 2.697 a 2.597 a.C. Entretanto, no romance de Huxley, não existe imperador ou qualquer outro déspota, capaz de tamanha façanha. O que sempre pensei foi de que para um governo totalitário, existiria necessariamente a figura carismática de um ditador. Não é o acontece nesta distopia.

Em Admirável mundo novo, a ideia de distopia está atrelada ao de utopia, sendo que naquela sociedade dirigida, nem mesmo a opressão tem o seu significado comum, pois não há uma resistência que possa promover uma revolta.  Isso é assustador. O que existe é uma sociedade de castas, portanto com os diferentes, cada um desempenhando a sua tarefa para o desenvolvimento da sociedade. Existe esta situação na índia atual, sem que isso desperte qualquer movimento contrário dos países democráticos e modernos. É considerado parte de uma cultura, que assim foi moldada por milênios. Em países considerados avançados, a sociedade de castas não existe, mas as diferenças de tratamento e oportunidade estão ligadas às condições raciais, religião e classe social. Muito provavelmente, Huxley tenha falado não de um mundo distanciado, mas aquele próximo, em que ele vivia. O mesmo em que nós vivemos.

Longe de ser um mundo democrático, o descrito por Huxley tem no avanço da ciência, no campo da biogenética, da psicologia de massa, na propaganda o fator determinante para o seu desenvolvimento. O fator econômico conta menos. Aqueles elementos das castas também foram produzidos em escala industrial, formando seres com diferentes aptidões conforme o seu proveito no sistema de produção. Os da categoria Alfa são inteligentes, cabendo postos que exigem esta capacidade. Mas outros são necessários para trabalhos pesados, outros repetitivos, perigosos e sujos. Naquele mundo, os seres foram determinados para suprir necessidades para o desenvolvimento da cadeia alimentar e de serviços. Os desprovidos de inteligência não necessitam muito, não questionam, apenas executam as tarefas devidas. São parecidos com ogros, fortes e dóceis.

Não poderia ser chamado mais de humanos. Quanto menos brutalizadas são estas criaturas, mais próximos estão dos humanos, que ainda existem em estado selvagem. Os humanos são inteligentes, sentem as emoções e, portanto, mais instáveis. Desta forma, os humanos conseguem amar, da mesma forma, odiar, sentir raiva e ter compaixão. Neste futuro de Admirável mundo novo, tais expressões são totalmente desprezadas, um rastro de um mundo atrasado.

Ainda assim, não puderam mudar totalmente o comportamento dos seres, principalmente daqueles mais humanos, que apesar de todo o condicionamento, não puderam eliminar o sofrimento. A dor existe e deve ser eliminada. Isso foi feito. Quando alguma melancolia surgir, tomam um alucinógeno que chamam de Soma. O que seria afinal, o Soma! Não é preciso terapia, muito menos sessões custosas de psicanálise. É só tomar Soma. Mas considerando a tristeza como uma expressão da sensibilidade humana, a sua eliminação tornaria o ser menos humano. É uma situação complexa. Não há como justificar a dor, defender o sofrimento, mas a simples eliminação por um agente externo parece piegas, uma fuga da própria complexidade humana.

Em alguns momentos, surge o personagem o Selvagem, como os nativos, ainda livres do contágio daquele sistema controlador. Trechos das peças de Shakespeare são citados, como uma expressão da dimensão da alma humana. São contraditórias em que os conflitos marcam presença. Naquele mundo, Shakespeare seria considerado um decadente, uma memória de um tempo atrasado, o que representaria o Selvagem.

O totalitarismo de Admirável mundo novo, visto pelos personagens que lá vivem, é benéfica a fim de criar a ordem ainda que a duras penas. É como dissesse, os trabalhadores das minas amam trabalhar nas minas, pois gostam do calor e do perigo que correm. Dito uma vez parece estranho, mas repetidamente, passa a ser uma verdade plausível.

 

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