Canto do Bacuri – Filme “O Mistério do Farol”

Dos filmes recentes assistidos na plataforma Netflix, merece atenção “O Mistério do Farol”, produção britânica, de 2018. O título original é The Vanishing – Keepers, que podem ser traduzidos por desaparecidos – os guardadores. Foi dirigido pelo diretor dinamarquês Kristoffer Nyholm e tem como protagonistas Gerard Butler, Peter Mullan e Connor Swindells. O mistério do farol tem a capacidade de penetrar fundo na alma humana, de maneira glacial, como seriam as águas frias nas costas da Escócia.

Baseado em fatos reais, alguns fogem do assunto, pois a ficção deixou de existir para explorar atos comprovados. Não é bem assim. O caso de O mistério do farol, a inspiração surgiu a partir do desaparecimento de tjrês faroleiros na ilha de Flannan, no norte de Escócia. Nunca se soube direito da causa, nem os corpos foram encontrados. Portanto, a possibilidade tornou-se especulação. O que se conta é de que os faroleiros James Ducat, Thomas Marshal e Donald MacArthur desparecem. Isso aconteceu em 1900, quando o vapor Anchtor anunciou de que havia falha no funcionamento do farol.

Seria o desaparecimento dos faroleiros um assunto para os romancistas, que podem indicar probabilidades. Sendo a mostrada no filme uma delas. Isso se chama ficção, baseado em fatos reais. No caso, mais do que enfrentar tempestades violentas, o perigo seria outro, uma violência interna em estado de desumanidade. Haveria tensão quando o homem é posto em isolamento. Neste momento, no silêncio da mente, questões mal resolvidas, os desejos reprimidos, sentimentos e emoções negativas retornam dos baús empoeirados do inconsciente.

Nada acontece de inusitado nos primeiros dias e os três faroleiros passam o tempo em atividades comuns, como limpar o farol, preparar a alimentação e conversar. De fato, não estão isolados. Os três parecem pessoas comuns, que estão separados da ilha central, numa ilha menor, com o necessário: farta alimentação, abrigo e um tédio imenso. O mais velho deles, o experiente Thomas Marshal, passa o tempo ao tocar violino. O mais jovem, Donald Mac Arthur é incontrolável nas emoções. Enquanto, James Ducat, grandalhão, tem uma esposa e uma filhinha para cuidar. Nada se sabe mais do que isso. Mas evidentemente, cada um deles traz consigo uma bagagem de informações de suas vidas, que ao embarcarem na lancha que os conduz ao farol, deixaram para trás. Numa cena inicial, o jovem Donald ao deixar o cais, nada mais leva do que uma mochila.

Daqueles personagens, a do velho Thomas, discreto nas palavras, olhar perdido de marinheiro, barbas brancas, deve, evidentemente, ter mais histórias do que os outros. Ao quebrar a crosta de um caranguejo cozido, ele narra o processo: é como fosse um garrote. Um caranguejo é envolto numa corda que vai esmagando o animal ao ser torcido com o auxílio do cabo de uma colher. Num certo momento, rompe-se a crosta e ouve-se o ruído. Donald estremece na cadeira.

Quanto mais tenta-se esconder, o mal acompanha o homem, que exposto, acaba se expressando. Penso que foi este o tema de O mistério do farol. A natureza inóspita da ilha contribui para gerar situações adversas. Lá no farol, há o vazamento de mercúrio. Também, por causas desconhecidas, as gaivotas morrem sem causa aparente. A questão da ganância aparece quando encontram um barco encalhado, com o único tripulante adormecido, junto a uma arca. A vontade é saber o que aconteceu. Querem saber se o homem está vivo, mas igualmente interessados na arca.

A partir da descoberta, a situação se tornou mais clara. Aquela arca trazia tesouros, ambicionados por todos. Os piratas querem de volta, enquanto os faroleiros querem para si. Os faroleiros levam a melhor. Uma vez que os piratas são postos de fora, devidamente aniquilados, cabem aos três sobreviventes decidir o que fazer. Podem ficar com o tesouro. É tema comum dos filmes noir americanos, dos 50. Os bandidos não confiam em bandidos. Mas no filme em questão, não se trata de bandidos comuns. Ainda assim, se a situação for propícia, nada impede de que a tentação seja fator de desvio.

Não seria, este o momento, que as emoções reprimidas explodiriam como fogos de artifício. O jovem Donald é direto: ficar com o tesouro. Enquanto Ducat com rosto moldado pelo sal da maresia, ingressa no mundo de culpa e pecados. A sua personalidade é enriquecedora em ambiguidades. Por isso, a angústia de Ducat mostra a fragilidade humana diante das emoções contraditórias. Ficar com o tesouro trará conforto, ao mesmo tempo que a posse do ilícito gera desconforto espiritual. É o que não sente Donald. Nem mesmo Donald está preocupado com o companheiro. O silêncio de Marshal é muito mais interessante.

Por se tratar de filme que insiste em arrancar a casca mal curada de um machucado, condenamos a atitude, que acabou expondo a quebra de padrões, de um ato de civilidade, quando a violência vem à tona. Condenamos a leviandade de Donald e o drama de Ducat. O próprio Ducat culpa a Donald, que acabou por matar o dono da arca, gerando assim, a situação em que se encontrava.

Esta violência com o outro é menos agressiva do que a violência deles com os seus semelhantes. De minha parte, é apenas uma representação através de uma análise de comportamento, que pode significar muito mais do que estas linhas conseguem dizer. Os filmes de ilha remetem a um imaginário de mistério, de um imprevisto, servindo de cenário estético de uma representação das mais profundas salas da alma humana.

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