Canto do Bacuri – Niétotchka Niezvânova

Para ler os livros de Dostoiévski é necessária uma certa iniciação. Existe algo de interno neles, que incomoda, produz o diferente, as emoções levadas ao extremo em “água-maria”, para que tudo aconteça como nada acontecesse de maneira clara. O livro em questão é “Niétotchka Niezvânova, publicado pela Editora 34, São Paulo, de 2012. A tradução é de Boris Schnaiderman. Trata-se de um romance de 214 páginas. Nele, a narrativa é de Niétotchka Niezvânova, uma menina pobre, que em três partes revela a sua experiência de criança a adolescente.

São três situações de formação da menina Niétotchka, que se inicia aos cuidados da mãe e do padrasto, no caso, um músico frustrado, sempre desempregado. Podia-se dizer, se tratar mais do músico do que da narradora. Existe amor entre ambos, que o pai manipula a seu favor. Enquanto isso, a mãe tem de trabalhar arduamente para arcar com as despesas da casa. Iegor Iefimov é este músico, hábil no violino, o melhor de todos, o suficiente para ele próprio recusar trabalhos menores. Época em que na Rússia aristocrática, determinadas famílias ricas tinham a própria orquestra. Não deseja se submeter a ninguém, assim, vive às custas da cozinheira, sua esposa. Mas desperta um vínculo de cumplicidade com a filha adotiva, que diz amar mais a ele do que a própria mãe.

Este é o drama vivido por Niétotchka. Por uma indução do pai, rouba as economias da mãe para que o pai compre bebidas. Nunca julga o pai, apenas quer demonstrar o seu afeto por ele. Por outro lado, o pai se coloca como um gênio, incapaz de se submeter às obrigações da carreira. Antes teria sido sustentado por um admirador, vindo da Alemanha, igualmente violinista. Em todas as situações, Iegor tira proveito, achando que os menores devem agradar os de talento. Sempre, neste caso, posto sob uma visão mais crítica, o que parece ser é que os dominadores nutrem da força exercida sob os dominados. Mas para existir o dominador, tem de haver o aval do dominado. De qualquer forma, o dominado tem um papel determinante: existência de quem os domine.

Não se fala muito neste romance dos pobres, sendo a própria narradora um deles, que por uma força do destino, a sua vida se transforma. Será uma questão de sorte? Pode ser uma outra coisa, que no romance se vale para mostrar a classe dos aristocratas, que não trabalham, vivem doentes, de boas maneiras, numa casa grande com criados. Abruptamente, Niétotchka se vê numa outra família, que resolve adotá-la; para ser mais claro, servir de companhia para a filha que não tem amigas. Trata-se de uma casa, em que a filha é a princesa Kátia. É pouco anos mais velha do que Niétotchka. O seu papel naquela casa é estar ao lado de Kátia, que Niétotchka logo demonstra grande afetividade.

O que podem fazer duas meninas, encerradas no palacete, distante dos olhos dos adultos mostra as faces ocultas da amizade e do ciúme. É sempre da parte de Niétotchka, que deve agradar a amiga. Num jogo de sedução e dispersão, o tratamento por parte de Kátia é evasivo. Existe ciúme, quando Niétotchka é convidada a estudar francês, cuja assimilação surpreende a professora. Enquanto os elogios são para Niétotcha, Kátia se mostra intranquila, situação que piora, ao ser advertida de que não dedica tanto aos estudos quanto a outra.

Mas um dia, quebrando todos as convenções, uma declara a outra que se amam. Era o sentimento comum, de criança, que ainda não fazia distinção entre os polos masculino e feminino. Não existia esta separação, conforme ilustra Dostoiévski. Não existe nenhuma maldade naqueles beijos intensos, que fazia a boca ficar inchada e vermelha. Entre as emoções intensas, aquilo que ia na alma daquelas duas é o que o romance sugere, não deixa claro, lança pistas, diverte e emociona. Este é o talento do autor russo, cuja narrativa ao mesmo tempo intensa, acontece mais na alma do que a alma sente no mundo. Aquilo que não está escrito também deve ser lido, cada um conforme a sua sensibilidade, que às vezes cansa. É uma construção do inacabado…

Tudo tem um fim, como que tudo o que aconteceu antes, seja deixada de lado. Assim, Niétotcka segue o seu caminho, de uma adotada de uma família, outra família acaba adotando. Esta terceira parte, o autor teria escrito depois, criando uma ruptura momentânea, assim confirma o tradutor da obra, Boris Schnaiderman. Desta vez, um casal adota a menina, que passa de menina para adolescente. Vai morar na casa de Aleksandra Mikháilovna e seu marido Piotr Aleksândrovich, que de pronto mostrou-se sombrio. Somente os de longe percebem algo de estranho, uma sombra maligna por detrás de determinados personagens. A maldade seria um fator de existência do perigo a ser evitado. Mas não caberia a Niétotchka alertar.

A trama ganha força quando Niétotchka consegue a chave da biblioteca, que para ela é como descobrisse um mundo misterioso, sempre fechado, longe dos olhares dos incautos. Mais do que simples livros, escondia a biblioteca algo que vai incomodar a todos. Havia segredos e uma traição por trás das estantes, no meio dos livros. Este é o momento de tensão, naquele ambiente escuro, só para alguns. Não era o caso de Niétotchka.

É um romance indicado para quem gosta de desvendar os segredos da alma.

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