Canto do Bacuri – Riphagen

Um filme de guerra do cinema europeu, no caso, holandês. Riphagen é de 2016, dirigido por Pieter Kuijpers. Pode ser visto atualmente no aplicativo Netflix. Se os alemães nos filmes do gênero são os vilões, na luta entre o mal e os princípios soberanos de liberdade e do fim da opressão imposta pelos invasores, em Riphagen, outros elementos – tão próximos – da falha humana aparecem. Isso incomoda. Mais de 70 anos do final da guerra, parece que o cinema, depois da literatura, retira dos porões da memória fantasmas que por longas décadas mantiveram-se adormecidos. Dries Riphagen foi um mal caráter e ladrão, que aproveitando da presença dos nazistas na Holanda ocupada, que ao lado destes, aproveitava para enganar os judeus holandeses, que confiavam joias e pedras preciosas, que seriam mais tarde devolvidas. Era um engodo.

Dries Riphagen foi um personagem real, um poderoso mafioso, ardiloso o suficiente para trabalhar para os alemães e para aos membros da Resistência Holandesa. Como colaborador das tropas de ocupação, ele tinha por função encontrar os judeus e entregá-los para os alemães. Isso se daria mais tarde. Antes disso, fazia um acordo com os judeus, que a custo de suborno, facilitaria uma possível fuga para a Inglaterra. Muitos caíram na armadilha. Quando a guerra acabou, iniciou-se uma caça aos colaboracionistas, integrado pelos antigos membros da resistência. Evidentemente, Dries Riphagen encontra-se entre os investigados, que ardilosamente, procura incriminar outros participantes da Resistência como traidores.

Esta situação de conflito acontecia, possivelmente, entre os nacionais, que por simpatia ou medo do invasor, acabavam por trair os companheiros. Não somente na Holanda, também em outros países ocupados, haveria casos semelhantes. Assim, com o fim da ocupação, acontece a perseguição e execução daqueles que tinham favorecido o lado oposto. Não havia um julgamento, apenas a confissão e a execução sumária. Mas em se tratando de Dries Riphagen, nada disso aconteceu, que por artimanhas e intrigas, salva a própria pele ao mesmo tempo que acusa outros. Não se pode dizer que não houvesse traições. Este é um dilema do pós-guerra, uma culpa a ser mantida em segredo.

Num momento de maior impasse, Riphagen fugiu pela fronteira belga, com a ajuda de agentes a serviço do próprio governo holandês. Nunca mais ele foi capturado. Isso é desagradável do ponto de vista moral, não da História. Teria acontecido desta forma. Muitos fugiram para a América do Sul, como Paraguai e Argentina. O que se diz a respeito é que Riphagen teria ido a Argentina e recebido a proteção do presidente Juan Domingo Perón. Como ele tinha uma predileção pelo boxe, naquele país trabalhou em prol do desenvolvimento do esporte.

Quando se assiste a Riphagen, sem simpatia pelo personagem, devido a sua crueldade e mentira, a cada momento em que ele se dá bem, deixa um gosto amargo na boca. Torcemos para que ele tropece, sua máscara caia, seja enfim, feita justiça. Mas ele é esperto demais para qualquer deslize. Tem influência no meio em que vive. Isso o torna o mafioso mais perigoso da Holanda, capaz de burlar a lei, incriminar os inocentes e matar sem piedade. Ao deixar a Holanda, carrega consigo caixas de joias roubadas dos judeus, que ao invés da liberdade, caminharam em direção às câmaras de gás. No caso, não era um problema dele. Antes mesmo da invasão alemã, Riphagen era um mafioso, que com a nova situação, tirou vantagem em proveito próprio. Nem mesmo pode-se acusá-lo de ter sido um nazista. Mas, de alguma forma, os regimes autoritários agradavam a ele.

A situação de ocupação durante a guerra e do pós-guerra é capaz de revelar facetas desconhecidas do ser humano. Se podemos impingir o título de maldade aos nazistas, parece que todos nós, de maior ou menor grau alimentamos em nosso comportamento algo de semelhante. Isso pode surgir em situação extrema, quando a moral perde-se num campo de emoções descontroladas, em que o ódio torna motor das ações.  Nesse sentido, o cinema em sua liberdade de abordar assuntos diversos, em criação estética, é capaz de explorar todas as nossas emoções, ainda aquelas que foram reprimidas. Este processo pode ser doloroso, mas ao mesmo tempo libertador. Que a psicanálise seja capaz de dar uma explicação razoável.

Em se tratando de História, como disciplina especializada, os fatos passados podem se tornar assunto de debate e reflexão. Não se trata de perseguir os vilões, também partes de uma narrativa que marcou presença no passado. Nem os bons podem se dar bem, ou ter um final feliz. Da maneira como caminha os acontecimentos, apenas observamos a contradição dos eventos e o que desejaríamos que fosse não passa de uma vaidade de nossa parte.

A beleza do cinema é justamente criar a narrativa, de imagens e diálogos, que torna a vida menos hostil em relação a uma representação em que a violência vulgarizou. O endurecimento do olhar diante da violência do mundo vivido merece um colírio que possa retomar a beleza da vida e da confiança humana. Que o ódio é uma fraqueza, nunca justificada, nem deve ser enaltecida.

 

 

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