Canto do Bacuri – 37 Segundos

A diretora que se apresenta como Hikari, em os 37 Segundos, faz parte dos filmes exibidos exclusivamente pela Netflix, produzido em 2020. Por duas vezes, assisti a este filme, em ocasiões diferentes. Tem no elenco a estreante Mei Kayama, que faz o papel de Yuma Tanaka, de 23 anos, cadeirante, o corpo pequeno e dificuldades nos braços. Não se trata, no caso, de uma representação de uma deficiente, sendo ela uma própria. Nesta condição, ajudou bastante na exploração deste tema. O filme foi selecionado para a Mostra Panorama do 69º. Festival de Berlin e no Tokyo International Film Festival, em 2019.

Como personagem central, Yuma Tanaka vive inúmeras situações, em que a sua condição de cadeirante, teria provocado naquela sociedade aparentemente resolvida. Será possível!  Ainda que as ruas japonesas não tenham buracos, bueiros destampados, lixos pelo chão, o cadeirante consegue se locomover numa cadeira motorizada, os ônibus prestam apoio na subida e descida dos necessitados, existe o fator humano e social que geram dificuldades. Nem tudo está resolvido. Este é o tema do filme. Yuma é uma próspera desenhista e roteirista de mangá. Entretanto, algo inescrupuloso aconteceu, envolvendo a prima. Esta vende a imagem de ser ela a autora dos mangás, com o nome Sayaka. Era mais apresentável do que Yuma, que ao vestir-se como uma das personagens, ganha as luzes dos holofotes. Quando o dinheiro das vendas chega, a maior parte fica com a prima.

O papel em torno de Yuma, de subserviência, gera profunda indignação. De um lado, de ser explorada, de outro, de permitir tal situação. O mundo não foi criado para os deficientes. Nem ao menos, podem demonstrar a sua sexualidade. É como não tivessem direito a isso. Justamente no Japão, em Tóquio, cheio de luzes coloridas pela noite, dos bairros centrais, criando uma atmosfera nebulosa em que o sexo palpita em cada esquina. Coisas daquele país. Não somente isso, existe também uma indústria de mangá para adultos em que toda perversão é canalizada nas páginas de desenhos sugestivos e provocadores.

Num momento de esforço para se inserir no mercado de mangá, Yuma visitou uma editora, após a recusa de muitos, que não careciam de um novato neste mercado. Haveria também uma saturação. Mas talento era outra coisa. O que queria a editora era justamente as narrativas carregadas de erotismo, produto vendável para um leitor ávido de emoções. Ao recusar os rascunhos de Yuma, percebendo a sua condição de cadeirante, que não era um problema, a pergunta surgiu cortante: “Você teve experiências num relacionamento carnal”. “Não, nunca tive”, devolveu. A editora reconheceu o valor dos traços da desenhista, mas suas narrativas pareciam estereotipadas.

A busca desta experiência, como fosse uma iniciação do corpo, cria situações inesperadas, em que o deficiente depara com as próprias limitações e uma compaixão desnecessária, que humilha mais do que dignifica. Se Yuma, ao encontrar-se com diversos homens, numa lanchonete, submetendo-se a uma conversa direta e sincera, a falsidade nas palavras demonstra uma atitude de total desprezo pelo diferente. De fato, Yuma é a diferente, como que não existisse, sem sentimentos.

Da mesma forma, eivada de preconceitos, a mãe de Yuma, não quer expor a filha aos sofrimentos do mundo, protegendo-a em demasia, inibindo a liberdade dela. Não é aquela uma família que se encaixe nos padrões da normalidade. Mas é uma família, que merece a felicidade. Somente fazem parte dela, a filha e a mãe, sem outros. Há muitas famílias em condições anômalas daquilo que se convencionou como sendo o idealizado. Isso não acontece sempre. Foi um modelo tradicional, o desejado, que teve que se moldar a uma realidade histórica por fatores diversos. Nos filmes de Yasujiro Ozu, que se estendem da década de 30, passando pelo período da guerra, depois na ocupação americana e dos filmes coloridos, a família padrão japonesa, também acabou sofrendo mudanças. De fato, o que existiu é a crise do padrão, imposto por uma postura ideologicamente conservadora.

A família de Yuma é mais atual, totalmente desestruturada, de certa forma tolerada, em que a individualidade tornou centro motor da sociedade liberal. Evidentemente, existem os desencaixados nela, meio fora da lei, quer dizer, marginalizados, com os seus dilemas ao buscar a inserção social, em meio a uma luta de conquistas e derrotas.

O filme 37 Segundos diz respeito a um tempo que Yuma deixou de respirar, provocando a sua deficiência. Uma irmã gêmea, que nasceu antes dela, todas as condições foram favoráveis. A questão posto por Yuma foi de que poderia ter acontecido também com a irmã. Mas foi com ela. As duas poderiam ter nascidos normais. Não aconteceu. Yuma contemporiza “foi bom que aconteceu comigo”. Sem revolta, sem amargura, apenas viver a vida que o Universo proporcionou. Assim aconteceu, sem explicações.

Este tema dos “não aceitos” incomoda por reconhecer de que existe uma barreira, seja econômica, seja cultural, de exclusão em nome de uma ordem em nome do igual. Os outros, são os outros. Incluem-se nestes, os refugiados, migrantes pobres, os pobres do próprio país, os ignorantes e os loucos. Sem enveredar por um viés político explícito, este filme incomoda, sendo também nós produtores de igual situação.

Deixe uma resposta