Canto do Bacuri – It – A Coisa

(Por Francisco Handa)

Muito se falou a respeito de It – A Coisa, filme de 2017, do original de Stephen King, livro lançado no Brasil em 2014 pela Editora Schwarcz. Assisti primeiramente ao filme. Foi gratificante, mas uma dúvida ficou no ar. Era simples demais, como o filme foi entendido, de que havia um mal vindo do espaço, que seria derrotado no final pelos meninos de Derry. Dizer que o livro é melhor do que o filme, nesse caso, se torna uma verdade. O livro tem 1102 páginas. Segundo consta, Stephen King deu início a esta obra em setembro de 1981 e terminou em dezembro de 1985.

Não se trata de um livro com um vilão caricato, seja zumbi, seja vampiro, ou ainda um espantalho. Muito batido! O monstro que vai assustar os meninos daquela pequena cidade de Maine, na costa leste, na chamada Nova Inglaterra, tem todas as formas possíveis que mete medo, retirado do repertório de uma sala de horrores de nossa infância. Esta criatura habitava o subterrâneo da cidade, nos canais de esgoto, de água suja, de detritos humanos e compostos orgânicos. Lá estava a Coisa. Assim é tratado. O fato de habitar os lugares sujos e ocultos, assemelha-se com um inconsciente coletivo de Derry, em que seus habitantes mostram a faceta de moralidade e fervor religioso, mas nas sombras o pecado e a vergonha esperam o momento certo para explodir nas bocas de lobo num temporal próximo.

O primeiro fato registrado teria sido o assassinato de George Denbrough, acontecido em 1957, que ao tentar alcançar um barquinho de papel, posto a navegar nas correntezas da chuva, deu de cara com um palhaço. Era um palhaço sinistro que encontrava dentro do bueiro. George era um garoto de uns 5 ou 6 anos. Seu irmão, Bill Denbrough se torna um personagem central, ao lado do palhaço, ou melhor de Bob Gray, tratado igualmente por Pennywise.

O palhaço, tratado como a Coisa, aparece diante dos amigos, eram ao total sete, membros do Clube dos Otários. Nos circos, os palhaços são a atração mais esperada pelas crianças, que divertem com suas brincadeiras doidivanas carregadas de exageros. Seus rostos são pintados, com olhos irreais e bocas enormes.

Seu nariz, despropositados. Nunca gostei de palhaços. Havia algo de falso neles, que mais assustava do que alegrava. De fato, esta vertente do pensamento será a direção tomada em relação ao inesperado palhaço, que carregava suas bolas de vento, vermelhas, e que atraia as crianças. Somente as crianças viam o palhaço. Seria então, o palhaço um encantamento criado durante a infância, que desapareceria quando adulto. Mas o romance em si não foi feito para a apreciação das crianças. Que criança teria a paciência de ler 1102 páginas.

Em todo o desenvolvimento do romance, duas datas são levadas em consideração: 1957 e 1985. Num primeiro encontro com a Coisa, o esforço dos sete amigos conseguiu ferir e adormecer o mal. Sabiam de que o serviço não terminara ainda. Conforme o que ensinava a tradição, a cada 27 anos o mal retornaria e novamente se instalaria o caos em que os assassinatos eram a marca deixada em Derry. Aquilo tinha por morada o subterrâneo daquela cidade. Somente em Derry. Esta cidade foi uma criação de Stephen King, que mora em Maine. Não é a primeira vez que o autor cita esta cidade em seus romances. Lá é onde as coisas estranhas acontecem. Era em Derry que seis meninos e uma menina juntam-se numa amizade de confiança, capaz de enfrentar as loucuras de Henry Bowers, Victor Criss e Arroto Huggins. Naquela sociedade americana próspera, também produz aquilo que pode ser chamado de nefasto, uma maldade injustificável diante das mentes esclarecidas. Este romance de King fala a respeito da infância de crianças maltratadas pelos pais violentos, que acabam reproduzindo o mesmo padrão em colegas fisicamente mais fracos. É o domínio dos brutos, menos inteligentes, em relação aos que desejam ter uma vida normal, de esforço e, assim, ingressar na universidade.
Mas a união das sete crianças, com suas dificuldades (um gordo, um gago, um asmático), podem vencer as dificuldades. A maldade não estava em a Coisa, mas nas pessoas. Apenas a Coisa podia deixar que as pessoas pudessem aflorar os seus sentimentos mais brutais em meninos desajustados, que jamais seriam incorporados à sociedade. Todos estes sentimentos, das pessoas comuns, que reprimiam, eram carregados pelo esgoto imundo dos canais subterrâneos. A cada 27 anos, em forma de ajuste de contas, os pecados acumulados retornariam exigindo vingança. Quando em 1985 os sete se juntam novamente em Derry não são mais crianças.

Mas somente uma alma criança do passado é capaz de enfrentar a Coisa, novamente nos canais sujos. Assim agem eles. Se a criança tem a capacidade de enxergar um mundo fantástico, existe a inocência da amizade pura que deve ser retomada.

Aquelas sete crianças moradoras de Derry tinham algo em comum: eram diferentes na cultura e na religião. Filhos de imigrantes: judeus, poloneses católicos, irlandeses, holandeses etc. Apesar destas diferenças, eram americanos. Em nenhuma hipótese, os Estados Unidos eram um país perfeito, pelo contrário. Derry representava um passado com os seus deslizes, que acima do asfalto mostrava a vivacidade de uma sociedade pujante, abaixo, como em qualquer outra sociedade, a água suja pronta a estourar nos dias de temporal. Naqueles bueiros pode existir um palhaço, com um sorriso largo e cínico espiando demoradamente. Lá eles chamam de Pennywise ou apenas a Coisa.

 

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